Eu, Clícia, nunca vi tanto lixo dentro de um apartamento em minha vida. Lembro-me como se fosse ontem. O síndico de um condomínio localizado em um bairro nobre de São Paulo nos ligou dizendo que um dos apartamentos tinha pegado fogo por causa de um curto-circuito causado pelo acúmulo de resíduos no imóvel.
Até então, o síndico do prédio não sabia que ali morava um acumulador compulsivo. Ele só soube quando viu a fumaça pela janela subiu correndo para tentar apagar o fogo. Quando entrou no apartamento se deparou com um monte de lixo entulhado até o teto e o imóvel em chamas. O coitado não sabia se apagava o fogo ou se ficava impressionado com aquele monte de lixo. Na verdade, ele nem sabia como chegar até o local do incêndio porque não tinha como entrar no lugar.
Àquela altura, o síndico já tinha chamado o Corpo de Bombeiros. Pouco tempo depois de ele subir para o apartamento do acumulador, os bombeiros chegaram e apagaram as chamas. O lixo, que já era terrível ver de se ver seco, ficou todo molhado. O que queimou virou uma maçaroca, e o que era de metal ficou derretido ou retorcido.
Fomos eu e o Sergio fazer a vistoria. Quando chegamos, o zelador já nos recebeu com aquele olhar de horror e desespero. Ele dizia: “Vocês não vão acreditar no que vocês vão ver!” Eu pensei na hora que deveria ser mais um caso típico de acumulador. O que é impressionante para as pessoas, pra gente, que trabalha com isso, não é tanto. Naquele dia eu me equivoquei.
Subimos pelo elevador e quando chegamos no hall vimos que a porta não tinha maçaneta, pois tinha sido arrombada no dia do incêndio. Tentamos abri-la, mas não conseguíamos. Ela estava emperrando. Quando forçamos mais um pouco descobrimos que a porta não abria porque o dono do apartamento estava dormindo na sala em cima do lixo! Então, quando empurrávamos a porta, ela batia no pé do morador. Ele estava aparentemente embriagado ou de ressaca. Acordou meio assustado e perdido ao nos ver ali, em sua frente. Tentamos conversar com ele, perguntar se tinha algo que ele não queria jogar fora, e ele apontou para uma bicicleta. Mas quando olhei, só vi um pneu, metais retorcidos e o pedaço de um guidão. Vi que não tinha salvação, mas disse tudo bem ao homem, que faria o possível. Em seguida, o morador saiu. Nós entramos para fazer a vistoria. Depois de uns dias, voltamos para fazer o trabalho de limpeza.
Era um apartamento cheio de móveis antigos e uma quantidade razoável de lixo espalhado no chão. Até aí, nada de incomum. Mas quando entrei no corredor que dava acesso direto para os quartos, inclusive o que pegou fogo, fiquei realmente impressionada! Neste cômodo, em especial, tinha muita latinha de cerveja, garrafa pet de refrigerante e de pinga, a maioria cheia de urina dentro. Era tanto lixo que só era possível ver metade do guarda-roupa. Não dava para ver nada do que tinha embaixo daquilo. Tudo fedia. Por causa do incêndio, o quarto cheirava a lixo queimado e defumado. O ferro da janela estava todo retorcido por causa do fogo. Na esquadria da mesma janela encontramos dois dentes. À medida que limpávamos também encontrávamos maçarocas de cigarros molhados por todas as partes (o morador fumava muito).
No segundo dia de limpeza encontramos uma cama debaixo daquele lixo todo. O trabalho estava sendo feito por quatro pessoas e ninguém conseguia, literalmente, pisar no chão de tanta tralha que tinha naquele apartamento! Na cozinha encontramos um peixe no forno que tinha até se decomposto. Ele devia estar ali há alguns anos. Por meio de fotos antigas e documentos encontrados na bagunça, descobrimos que o morador era de classe média e estudou em escola particular. Quando vi aqueles papéis me perguntei em que momento este homem adoeceu a ponto de viver como vivia.
Foi o pior caso de acumulador que já pegamos desde o início da empresa. Em três dias de trabalho retiramos duas caçambas pequenas e uma roll-on de mais 20 metros cúbicos, ou seja, três toneladas de lixo. Trabalhamos com calor e odor insuportáveis. Em certo momento, achei que não íamos dar conta do recado. No fim, conseguimos. E a sensação de dever cumprido e de alívio era imensa.
Deixamos o apartamento limpo e cheiroso. Mas o morador foi expulso do condomínio e passou a morar numa pensão próxima ao local. Uma história triste, que se repete em vários cantos do país.
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